Entrevista Exclusiva:
Cardeal Burke Explica
Apelo ao Papa por Esclarecimento
14 de novembro de 2016
O Cardeal Raymond Burke concedeu ao presidente da associação Catholic Action for Faith and Family, Thomas McKenna, a seguinte entrevista, a fim de explicar melhor as intenções dos quatro cardeais e os documentos publicados sob o título “Buscando Clareza: Um Apelo para Desatar os Nós em Amoris Laetitia”. O texto completo está disponível ao final da entrevista.
Catholic Action: Eminência, obrigado por conceder-nos esta entrevista sobre o que o senhor publicou hoje. A substância dos documentos que o senhor e os outros cardeais tornaram públicos é chamada “Dubia”. O senhor poderia explicar o que significa essa expressão e o que está envolvido na apresentação das Dubia?
Cardinal Burke: O prazer é meu por discutir essas importantes questões com você. O título do documento é: “Buscando Clareza: Um Pedido para Desatar os Nós em ‘Amoris Laetitia’.” Tem como co-autores quatro cardeais: Cardeal Walter Brandmüller, Cardeal Carlo Caffarra, Cardeal Joachim Meisner e eu. Meus amigos cardeais e eu estamos a publicar um apelo que havíamos feito ao Santo Padre, o Papa Francisco, em relação à sua recente Exortação Apostólica, Amoris Laetitia. Partes do documento contêm ambiguidades e afirmações que são como nós que não podem ser facilmente desfeitos e que estão causando grande confusão. Compartilhando a devoção do Papa por Nossa Senhora Desatadora dos Nós, estamos pedindo a ele que esclareça essas afirmações ambíguas e, com a ajuda de Deus e pelo bem das almas, desate algumas das afirmações nodosas do documento.
Dubia é a forma plural da palavra latina dubium, que significa uma questão ou uma dúvida. Quando surge na Igreja uma questão ou uma dúvida importante acerca da fé ou de sua prática, é costume que os bispos e sacerdotes, ou mesmo os fiéis, articulem formalmente a questão ou a dúvida e apresentem-na ao Romano Pontífice, cujo ofício é competente para lidar com o tema. A formulação de uma questão ou dúvida individual é chamada simplesmente de dubium. Se mais de uma questão ou dúvida é articulada, elas são chamadas dubia. A Exortação Apostólica Pós-sinodal Amoris Laetitia levantou inúmeras questões e dúvidas nas mentes dos bispos, sacerdotes e fiéis, muitas das quais já tinham sido apresentadas ao Santo Padre e discutidas publicamente. Neste caso específico, quatro cardeais apresentaram formalmente ao Santo Padre cinco questões ou dúvidas fundamentais relacionadas à fé e à moral e baseadas na leitura de Amoris Laetitia.
CA: Atualmente, muitas pessoas na Igreja estão discutindo o que é designado como “pastoral”. O senhor poderia nos falar um pouco sobre o documento publicado hoje, e como ele se relaciona ao fato de ser pastoral?
A verdade, dita com caridade, é clara e pastoral. Pastoralmente falando, nunca é conveniente deixar matérias importantes — as quais, no caso presente, dizem respeito à salvação das almas — em dúvida ou em confusão. Nós quatro, como bispos comprometidos com o cuidado pastoral da Igreja universal e como cardeais que têm a responsabilidade particular de assistir o Santo Padre no ensino da fé e na promoção da sua prática na Igreja universal, julgamos ser nossa responsabilidade tornar públicas essas questões, tendo em vista o bem das almas.
CA: Esse documento escrito em conjunto consiste, na verdade, em vários documentos, como indica o cabeçalho do texto. O senhor poderia explicar por que existem diferentes partes e o que elas significam?
O núcleo do que estamos publicando hoje é uma carta que nós quatro inicialmente enviamos ao Papa Francisco, juntamente com as dubia — isto é, juntamente com uma série de questões formais e importantes — sobre Amoris Laetitia. O processo de submeter questões formais é uma prática venerável e consolidada na Igreja. Quando a questão diz respeito a uma matéria grave que afeta muitos dos fiéis, a Igreja responde a essas questões com um “sim” ou “não”, às vezes com alguma explicação. Nós também enviamos uma cópia da carta e das dubia ao Cardeal Gerhard Ludwig Müller, cabeça da Congregação para a Doutrina da Fé, que tem competência particular para lidar com essas questões.
A fim de fornecer uma conjuntura da carta e das questões sobre Amoris Laetitia, também estamos publicando um breve prefácio e uma nota explanatória, que explicam o contexto da carta e das questões juntamente com um comentário a cada uma delas.
CA: Então o senhor está dizendo que está publicando uma carta que enviou ao Papa privadamente. Isso é extraordinário. Não se trata de uma ação questionável do ponto de vista cristão? Nosso Senhor diz no Evangelho de Mateus (18, 15) que, se temos um problema com um irmão, devemos falar com ele privadamente, um a um, e não publicamente.
No mesmo trecho da Sagrada Escritura a que você se refere, Nosso Senhor também diz que, depois de endereçar uma dificuldade a um irmão, individualmente e juntamente com outros, sem que ela se resolva, pelo bem da Igreja a matéria deve ser apresentada a toda a Igreja. É precisamente isso o que estamos fazendo.
Houve muitas outras afirmações de preocupação relacionadas a Amoris Laetitia, das quais nenhuma recebeu uma resposta oficial seja do Papa seja de seus representantes. Por isso, buscando clareza nesses assuntos, três outros cardeais e eu usamos a formalidade de apresentar questões fundamentais diretamente ao Santo Padre e ao Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Tampouco a essas questões foi dada alguma resposta. Assim, tornando públicas nossas questões ou dubia, nós estamos sendo fiéis ao mandato de Cristo de primeiro falar com uma pessoa privadamente, depois em um grupo pequeno e, finalmente, levar a matéria para a Igreja como um todo.
CA: Como o senhor diz, Amoris Laetitia tem sido objeto de muita discussão, e até de críticas. Por exemplo, o senhor afirmou famosamente que acredita não se tratar de um documento magisterial. O senhor poderia explicar como as presentes questões apresentadas ao Santo Padre se relacionam com essas outras análises da Exortação Apostólica?
Para entender a atual publicação, precisamos considerar o que levou a ela.
Logo após a sua eleição, na primeira mensagem dominical do Angelus, o Papa Francisco elogiou o entendimento de misericórdia do Cardeal Walter Kasper, que é um tema fundamental em Amoris Laetitia. Apenas alguns meses depois, o Vaticano anunciou um Sínodo Extraordinário sobre Matrimônio e Família para outubro de 2014.
Em preparação para o Sínodo, eu, juntamente com outros quatro cardeais, um arcebispo e três teólogos, publicamos o livro Permanecer na Verdade de Cristo. Como membro do Sínodo, notei que ao relatório preliminar faltava uma fundação sólida na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja. Depois, cheguei com outros cardeais à conclusão de que havia uma manipulação em curso no próprio Sínodo, bem como na redação do relatório final do Sínodo.
Antes do Sínodo de 2015, ao qual não fui convidado, onze cardeais contribuíram com um livro sobre o matrimônio e a família. Ainda que eu não tivesse contribuído com esse livro, li-o com grande interesse. Também antes do Sínodo Ordinário sobre a Família de 2015, mais de 790.000 católicos assinaram uma “Filial Súplica” ao Papa Francisco sobre o futuro da família, pedindo a ele que pronunciasse “uma palavra esclarecedora” para dissipar a “confusão generalizada” sobre a doutrina da Igreja. Juntamente com outros cardeais, eu fui um signatário. Durante a sessão de 2015 do Sínodo, treze cardeais-participantes assinaram uma carta ao Papa expressando sua preocupação sobre a manipulação do processo sinodal.
Em abril de 2016, Papa Francisco publicou Amoris Laetitia como fruto das sessões de 2014 e 2015 do Sínodo dos Bispos. No inverno de 2016, quarenta e cinco acadêmicos, incluindo alguns prelados, escreveram ao Santo Padre e ao Colégio de Cardeais, pedindo ao Papa para repudiar uma lista de proposições errôneas que podem ser traçadas de partes de Amoris Laetitia. A isso não houve nenhuma resposta pública.
Em 29 de agosto de 2016, juntei-me a vários bispos, sacerdotes e fiéis leigos na assinatura de uma Declaração de Fidelidade ao Ensinamento da Igreja sobre o Matrimônio e à Sua Ininterrupta Disciplina. Também a isso não houve nenhuma resposta pública.
Minha posição é que Amoris Laetitia não é magisterial porque contém sérias ambiguidades que confundem as pessoas e podem levá-las ao erro e ao pecado grave. Um documento com tais defeitos não pode ser parte da doutrina perene da Igreja. Por ser esse o caso, a Igreja precisa de absoluta claridade em relação ao que Papa Francisco está ensinando e encorajando.
CA: Alguns católicos devem estar preocupados com que sua presente publicação seja um ato de deslealdade.
Eu e os outros três cardeais estamos nos esforçando em sermos leais ao Santo Padre sendo leais a Cristo acima de tudo. Tornando público o nosso apelo por clareza de doutrina e prática pastoral, esperamos fazer desta uma discussão para todos os católicos, especialmente nossos amigos bispos. Toda pessoa batizada deve preocupar-se com a doutrina e a prática moral relacionadas à Sagrada Eucaristia e ao Santo Matrimônio, e com o modo como identificamos ações boas e más. Essas questões afetam a todos nós.
Longe de ser um ato de deslealdade ao Papa, nossa ação é profundamente leal a tudo o que o Papa representa e é obrigado a defender na competência de seu ofício. O Papa Francisco tem pedido franqueza na Igreja inúmeras vezes, solicitando dos membros da hierarquia abertura e responsabilidade. Nós estamos sendo francos, com o maior respeito pelo ofício do Santo Padre, e exercendo, de acordo com a luz de nossas consciências, a abertura e a responsabilidade que a Igreja tem o direito de esperar de nós.
Esse é meu dever como cardeal da Igreja Católica. Eu não fui criado cardeal para receber uma posição honorária. Ao contrário, Papa Bento XVI fez-me cardeal para assisti-lo, a ele e a seus sucessores, no governo da Igreja e no ensino da Fé. Todos os cardeais têm o dever de trabalhar proximamente ao Papa pelo bem das almas, e é isso precisamente o que estou fazendo ao levantar questões de grave importância atinentes à fé e à moral. Não estaria cumprindo meu dever como cardeal — e portanto como conselheiro do Papa — se permanecesse em silêncio sobre um assunto de tamanha seriedade.
CA: Gostaria de continuar, se me permite, nessa mesma linha de pensamento. Não está muito claro como sua publicação pode estar sendo dócil ao pedido do Papa por uma maior sensibilidade pastoral e criatividade dentro da Igreja. O Papa não indicou a sua posição em uma carta aos bispos argentinos? Outros cardeais disseram que a maneira adequada de ler Amoris Laetitia é que ela autoriza casais divorciados e recasados a comungarem em certas circunstâncias. À luz disso, alguém poderia afirmar que seu documento está criando mais confusão.
Primeiro, um ponto de esclarecimento. O ponto controverso não é sobre casais divorciados e recasados receberem a Sagrada Comunhão. É sobre casais sexualmente ativos, mas não casados validamente, receberem a Sagrada Comunhão. Quando um casal obtém um divórcio civil e uma declaração canônica de que nunca foram casados validamente, então eles estão livres para se casarem na Igreja e receberem a Sagrada Comunhão, quando estiverem devidamente preparados para recebê-la. A proposta de Kasper é permitir que uma pessoa receba a Sagrada Comunhão quando ele ou ela pronunciou validamente os votos matrimoniais, mas não está mais vivendo com seu cônjuge e agora vive com outra pessoa, com a qual ele ou ela é sexualmente ativo. Na realidade, essa proposta abre a porta para que qualquer pessoa, cometendo qualquer pecado, receba a Sagrada Comunhão sem arrependimento do pecado.
Eu também gostaria de destacar que apenas a primeira das nossas questões ao Santo Padre tem como foco o Santo Matrimônio e a Sagrada Eucaristia. As questões 2, 3 e 4 são sobre temas fundamentais relacionados à vida moral: se atos intrinsecamente maus existem, se uma pessoa que habitualmente comete um grave mal está em estado de “pecado grave”, e se um pecado grave por acaso pode tornar-se uma boa escolha por causa de circunstâncias ou intenções.
É verdade que o Santo Padre escreveu uma carta aos bispos argentinos, e que alguns cardeais propuseram as interpretações de Amoris Laetitia que você mencionou. No entanto, o próprio Santo Padre não esclareceu algumas das questões “nodosas”. Contradiria a Fé se qualquer católico, inclusive o Papa, dissesse que uma pessoa pode receber a Sagrada Comunhão sem arrepender-se de pecado grave, ou que viver maritalmente com alguém que não seja o próprio cônjuge não é um estado de pecado grave, ou que não existe um ato que seja mau sempre e em todo lugar e que possa mandar uma pessoa para a perdição. Por isso, eu me uno aos meus amigos cardeais em um apelo para um esclarecimento inconfundível por parte do próprio Papa Francisco. Sua voz, a voz do Sucessor de São Pedro, pode dissipar quaisquer questões sobre o assunto.
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Texto Completo das Dubia a Sua Santidade, o Papa Francisco, segue abaixo:
Buscando Clareza: Um Apelo para Desatar os Nós em “Amoris Laetitia”
- Um Prefácio Necessário
- A Carta dos Quatro Cardeais ao Papa
- As “Dubia”
- Nota Explanatória dos Quatro Cardeais
1. Um Prefácio Necessário
O envio desta carta a Sua Santidade, o Papa Francisco, por parte de quatro cardeais, nasce de uma profunda preocupação pastoral.
Temos notado uma grave desorientação e uma grande confusão de muitos fiéis, relativas a questões extremamente importantes para a vida da Igreja. Temos notado que inclusive no seio do colégio episcopal existem interpretações contrastantes do Capítulo 8 de “Amoris Laetitia”.
A grande Tradição da Igreja ensina-nos que o caminho para sair de situações como esta é recorrer ao Santo Padre, pedindo à Sé Apostólica que resolva aquelas dúvidas que são a causa de desorientação e confusão.
O nosso ato é, portanto, um ato de justiça e caridade.
De justiça: com nossa iniciativa nós professamos que o ministério petrino é o ministério da unidade, e que a Pedro, ao Papa, pertence o serviço de confirmar na fé.
De caridade: nós queremos ajudar o Papa a prevenir divisões e conflitos na Igreja, pedindo-lhe que dissipe todas as ambiguidades.
Cumprimos também um dever especial. De acordo com o Código de Direito Canônico (cân. 349), aos cardeais, mesmo tomados individualmente, está confiada a missão de ajudar o Papa a cuidar da Igreja universal.
O Santo Padre decidiu não responder. Nós interpretamos a sua soberana decisão como um convite para continuar, com calma e respeito, a reflexão e a discussão.
Por isso, estamos dando a conhecer a nossa iniciativa a todo o povo de Deus, oferecendo toda a documentação pertinente.
Esperamos que ninguém escolha interpretar essa matéria de acordo com um paradigma “progressistas/conservadores”. Isso seria completamente despropositado. Estamos profundamente preocupados com o verdadeiro bem das almas, que é a lei suprema da Igreja, e não em promover qualquer forma de política dentro da Igreja.
Esperamos que ninguém, julgando injustamente, nos tenha na conta de adversários do Santo Padre e pessoas desprovidas de misericórdia. O que fizemos e estamos fazendo nasce do profundo afeto colegial que nos une ao Papa, e de uma ardente preocupação pelo bem dos fiéis.
Card. Walter Brandmüller
Card. Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
2. A Carta dos Quatro Cardeais ao Papa
A Sua Santidade, o Papa Francisco
e aos cuidados de Sua Eminência, o Cardeal Gerhard L. Müller
Beatíssimo Padre,
Em seguida à publicação de vossa Exortação Apostólica “Amoris Laetitia”, teólogos e estudiosos propuseram interpretações que não são apenas divergentes, mas também conflitantes entre si, sobretudo no que diz respeito ao Capítulo VIII. Além disso, os meios de comunicação têm dado ênfase a essa disputa, provocando assim incerteza, confusão e desorientação entre muitos dos fiéis.
Por causa disso, nós abaixo-assinados, mas também muitos bispos e sacerdotes, recebemos numerosos pedidos dos fiéis de vários estratos sociais sobre a correta interpretação a dar ao Capítulo VIII da Exortação.
Agora, movidos em consciência por nossa responsabilidade pastoral e desejosos de implementar sempre mais aquela sinodalidade a que Vossa Santidade nos exorta, nós, com profundo respeito, permitimo-nos pedir-vos, Santo Padre, como Mestre Supremo da Fé, chamado pelo Ressuscitado a confirmar os seus irmãos na fé, que resolvais as incertezas e tragais clareza, dando benevolamente uma resposta às “Dubia” que anexamos à presente carta.
Digne-se Vossa Santidade abençoar-nos, assim como prometemos constantemente lembrar-vos em oração.
Card. Walter Brandmüller
Card. Raymond L. Burke
Card. Carlo Caffarra
Card. Joachim Meisner
Roma, 19 de setembro de 2016.
3. As “Dubia”
1. Pergunta-se se, de acordo com as afirmações de “Amoris Laetitia” (n. 300-305), se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e admitir portanto à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo matrimonial válido, convive “more uxorio” (maritalmente) com outra, sem que se preencham as condições previstas em “Familiaris Consortio”, n. 84, e em seguida confirmadas por “Reconciliatio et Paenitentia”, n. 34, “Sacramentum Caritatis”, n. 29. Pode a expressão “em certos casos”, da nota 351 (n. 305) da exortação “Amoris Laetitia”, ser aplicada a divorciados que estão em uma nova união e continuam a viver “more uxorio”?
2. Após a publicação da Exortação Apostólica Pós-sinodal “Amoris Laetitia” (cf. n. 304), deve-se ainda considerar válido o ensinamento da Encíclica de São João Paulo II “Veritatis Splendor”, n. 79, baseado na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, acerca da existência de normas morais absolutas que proíbem atos intrinsecamente maus e que são válidas sem exceções?
3. Depois de “Amoris Laetitia” (n. 301), pode ainda afirmar-se que uma pessoa que vive habitualmente em contradição com um mandamento da lei de Deus, como por exemplo aquele que proíbe o adultério (cf. Mt 19, 3-9), se encontra em situação objetiva de pecado grave habitual (cf. Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, Declaração de 24 de Junho de 2000)?
4. Após as afirmações de “Amoris Laetitia” (n. 302) sobre as “circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral”, ainda se deve ter como válido o ensinamento da Encíclica de São João Paulo II “Veritatis Splendor”, n. 81, baseado na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, segundo o qual “as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato intrinsecamente desonesto pelo seu objeto, num ato ‘subjetivamente’ honesto ou defensível como opção”?
5. Depois de “Amoris Laetitia” (n. 303), ainda se deve ter como válido o ensinamento da Encíclica de São João Paulo II “Veritatis Splendor”, n. 56, baseado na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, que exclui uma interpretação criativa do papel da consciência e que enfatiza que a consciência jamais está autorizada a legitimar exceções a normas morais absolutas que proíbem ações intrinsecamente más em virtude de seu objeto?
4. Nota Explanatória dos Quatro Cardeais
CONTEXTO
“Dubia” (“dúvidas”, em latim) são questões formais trazidas diante do Papa e à Congregação para a Doutrina da Fé pedindo esclarecimentos sobre temas particulares relativos à doutrina ou à prática.
O peculiar a respeito desses pedidos é que eles são formulados de um modo que requer como resposta “sim” ou “não”, sem argumentação teológica. Essa forma de se dirigir à Sé Apostólica não é uma invenção nossa, mas uma prática antiquíssima.
Tratemos agora do que está em jogo.
Após a publicação da Exortação Apostólica Pós-sinodal “Amoris Laetitia”, sobre o amor na família, surgiu um debate particularmente em torno de seu capítulo oitavo. Aqui especificamente os parágrafos 300-305 foram o objeto de interpretações divergentes.
Para muitos — bispos, sacerdotes, fiéis —, estes parágrafos fazem alusão, ou mesmo ensinam explicitamente, uma mudança na disciplina da Igreja no que diz respeito aos divorciados que vivem numa nova união, enquanto outros, admitindo a falta de clareza, ou mesmo a ambiguidade das passagens em questão, argumentam ainda assim que estas mesmas páginas podem ser lidas em continuidade com o magistério precedente e não contêm uma modificação quanto à prática e à doutrina da Igreja.
Motivados por uma preocupação pastoral com os fiéis, quatro cardeais enviaram uma carta ao Santo Padre sob a forma de “Dubia”, esperando receber clareza, dado que a dúvida e a incerteza são sempre altamente prejudiciais ao cuidado pastoral.
O fato de que os intérpretes cheguem a diferentes conclusões deve-se também a vias divergentes de entendimento da vida moral cristã. Nesse sentido, o que está em jogo em “Amoris Laetitia” não é somente se os divorciados que estão em uma nova união — sob certas circunstâncias — podem ou não ser readmitidos aos sacramentos.
Mais do que isso, a interpretação do documento também implica abordagens diferentes e contrastantes do modo de vida cristão.
Assim, enquanto a primeira questão das “Dubia” diz respeito a um tema prático relativo aos divorciados e civilmente recasados, as outras quatro questões tocam temas fundamentais da vida cristã.
AS QUESTÕES
Dúvida número 1:
Pergunta-se se, de acordo com as afirmações de “Amoris Laetitia” (n. 300-305), se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e admitir portanto à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo matrimonial válido, convive “more uxorio” (maritalmente) com outra, sem que se preencham as condições previstas em “Familiaris Consortio”, n. 84, e em seguida confirmadas por “Reconciliatio et Paenitentia”, n. 34, “Sacramentum Caritatis”, n. 29. Pode a expressão “em certos casos”, da nota 351 (n. 305) da exortação “Amoris Laetitia”, ser aplicada a divorciados que estão em uma nova união e continuam a viver “more uxorio”?
A primeira pergunta refere-se, em particular, ao n. 305 de “Amoris Laetitia” e à nota de rodapé 351. Embora a nota 351 fale especificamente dos sacramentos da penitência e da comunhão, ela não menciona os divorciados e civilmente recasados nesse contexto, e tampouco o faz o texto principal.
O n. 84 da Exortação Apostólica “Familiaris Consortio”, do Papa João Paulo II, já contemplava a possibilidade de admitir os divorciados e civilmente recasados aos sacramentos. Mencionavam-se aí três condições:
– As pessoas interessadas não podem separar-se sem cometer novas injustiças (por exemplo, no caso de eles serem responsáveis pela educação dos próprios filhos);
– Eles assumem o compromisso de viver de acordo com a verdade da sua situação, isto é, cessando de viver juntos como se fossem marido e mulher (“more uxorio”) e abstendo-se dos atos próprios dos esposos;
– Eles evitam dar escândalo (isto é, evitam dar a aparência do pecado para evitar o perigo de levar os outros ao pecado).
As condições mencionadas na “Familiaris Consortio”, n. 84, e nos documentos subsequentes lembrados parecerão imediatamente razoáveis, uma vez lembrado que a união conjugal não se baseia apenas na afeição mútua e que os atos sexuais não são apenas uma atividade entre outras da qual o casal possa participar.
As relações sexuais são para o amor conjugal. São algo tão importante, tão bom e tão precioso, que requerem um contexto particular, o contexto do amor conjugal. Por isso, não só os divorciados vivendo uma nova união devem abster-se, mas também qualquer pessoa que não esteja casada. Para a Igreja, o sexto mandamento, “Não cometer adultério”, sempre abrangeu qualquer exercício da sexualidade humana que não fosse conjugal, isto é, qualquer tipo de atos sexuais além dos que se tem com o próprio esposo.
Admitindo à comunhão os fiéis separados ou divorciados de seus legítimos esposos que entraram em uma nova união, na qual vivem com outra pessoa como se fossem marido e mulher, parece que a Igreja estaria ensinando, por essa prática, uma das seguintes afirmações a sobre matrimônio, sexualidade humana e a natureza dos sacramentos:
– Um divórcio não dissolve o vínculo matrimonial, e os parceiros da nova união não estão casados. Apesar disso, as pessoas que não estão casadas podem, em certas circunstâncias, praticar legitimamente atos de intimidade sexual.
– Um divórcio dissolve o vínculo matrimonial. As pessoas que não estão casadas não podem realizar legitimamente atos sexuais. Os divorciados recasados são esposos legítimos e os seus atos sexuais são atos conjugais lícitos.
– Um divórcio não dissolve o vínculo matrimonial e os parceiros em nova união não estão casados. As pessoas que não estão casadas não podem praticar legitimamente atos sexuais, razão pela qual os divorciados civilmente recasados vivem em uma situação de pecado habitual, público, objetivo e grave. Admitir pessoas à Eucaristia, no entanto, não significa para a Igreja aprovar o seu estado público de vida; o fiel pode aproximar-se da mesa eucarística mesmo com a consciência de pecado grave, e receber a absolvição no sacramento da penitência nem sempre requer o propósito de emendar de vida. Os sacramentos, portanto, estão desligados da vida: os ritos cristãos e o culto estão numa esfera completamente diferente da vida moral cristã.
Dúvida número 2:
Após a publicação da Exortação Apostólica Pós-sinodal “Amoris Laetitia” (cf. n. 304), deve-se ainda considerar válido o ensinamento da Encíclica de São João Paulo II “Veritatis Splendor”, n. 79, baseado na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, acerca da existência de normas morais absolutas que proíbem atos intrinsecamente maus e que são válidas sem exceções?
A segunda pergunta diz respeito à existência dos assim chamados atos intrinsecamente maus. O n. 79 da Encíclica “Veritatis Splendor”, de João Paulo II, assevera que é possível “qualificar como moralmente má segundo a sua espécie [...] a escolha deliberada de alguns comportamentos ou atos determinados, prescindindo da intenção com que a escolha é feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele ato para todas as pessoas interessadas”.
Portanto, a Encíclica ensina que há atos que são sempre maus, os quais são proibidos por normas morais que obrigam sem exceção (“absolutos morais”). Estes absolutos morais são sempre negativos, isto é, dizem-nos o que não devemos fazer. “Não matar”. “Não cometer adultério”. Somente as normas negativas podem obrigar sem qualquer exceção.
De acordo com “Veritatis Splendor”, com atos intrinsecamente maus nenhum discernimento de circunstâncias ou intenções é necessário. Unir-se a uma mulher casada com outro é e continua sendo um ato de adultério que, como tal, nunca deve ser praticado, ainda que agindo assim um agente secreto pudesse extrair segredos valiosos da mulher de um criminoso para salvar o reino (isso, que soará a um exemplo tirado de algum filme de James Bond, já havia sido contemplado por Santo Tomás de Aquino em “De Malo”, q. 15, a. 1). João Paulo II argumenta que a intenção (neste caso, “salvar o reino”) não muda a espécie do ato (“cometer adultério”), e que é suficiente saber a espécie do ato (“adultério”) para saber que não se deve praticá-lo.
Dúvida número 3:
Depois de “Amoris Laetitia” (n. 301), pode ainda afirmar-se que uma pessoa que vive habitualmente em contradição com um mandamento da lei de Deus, como por exemplo aquele que proíbe o adultério (cf. Mt 19, 3-9), se encontra em situação objetiva de pecado grave habitual (cf. Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, Declaração de 24 de Junho de 2000)?
No parágrafo 301, “Amoris Laetitia” recorda que “a Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes”, e conclui que, “por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante”.
Com a Declaração de 24 de Junho de 2000, o Pontifício Conselho para os Textos Legislativos procurou esclarecer o cânon 915 do Código de Direito Canônico, que determina que “não sejam admitidos à Sagrada Comunhão” aqueles que “obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”. A Declaração do Pontifício Conselho afirma que este cânon é aplicável também aos fiéis divorciados e civilmente recasados. Explica ainda que o “pecado grave” deve ser entendido objetivamente, dado que o ministro da Eucaristia não tem meios para julgar da imputabilidade subjetiva da pessoa.
Assim, para a Declaração, a questão da admissão aos sacramentos tem a ver com o juízo da situação de vida objetiva da pessoa, e não com o juízo de que tal pessoa se encontra em estado de pecado mortal. De fato, subjetivamente ele ou ela poderia não ser plenamente imputável, ou até inimputável em absoluto.
Na mesma linha, em sua Encíclica “Ecclesia de Eucharistia”, n. 37, São João Paulo II recorda que, “tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o estado de graça compete apenas ao interessado”. Por conseguinte, a distinção mencionada em “Amoris Laetitia”, entre a situação subjetiva de pecado mortal e a situação objetiva de pecado grave, já se encontra bem estabelecida no ensinamento da Igreja.
Contudo, João Paulo II continuava, insistindo em que, “em casos de comportamento externo de forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de sentir-se chamada em causa”. Ele então reiterava o ensinamento do cânon 915, mencionado acima.
A questão 3 das “Dubia” gostaria de esclarecer, portanto, se seria ainda possível dizer, mesmo depois de “Amoris Laetitia”, que pessoas vivendo habitualmente em contradição com o mandamento da lei de Deus, como o mandamento contra o adultério, o roubo, o homicídio ou o perjúrio, vivem em situações objetivas de pecado grave habitual, mesmo quando, por qualquer razão, não haja certeza de que elas são subjetivamente imputáveis por suas transgressões habituais.
Dúvida número 4:
Após as afirmações de “Amoris Laetitia” (n. 302) sobre as “circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral”, ainda se deve ter como válido o ensinamento da Encíclica de São João Paulo II “Veritatis Splendor”, n. 81, baseado na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, segundo o qual “as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato intrinsecamente desonesto pelo seu objeto, num ato ‘subjetivamente’ honesto ou defensível como opção”?
No parágrafo 302, “Amoris Laetitia” sublinha que “um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida”. As “Dubia” apontam para o ensinamento da Igreja — tal como foi expresso pela “Veritatis Splendor”, de João Paulo II —, segundo o qual circunstâncias e boas intenções não podem jamais transformar um ato intrinsecamente mau em um ato escusável ou até mesmo bom.
Também se questiona se “Amoris Laetitia” concorda que qualquer ato que transgrida os mandamentos de Deus, como adultério, homicídio, roubo ou perjúrio, não pode jamais, por causa de circunstâncias que mitiguem a responsabilidade pessoal, tornar-se inescusável ou mesmo bom.
Esses atos que a Tradição da Igreja chamou de maus em si mesmos e de pecados graves continuam a ser destrutivos e prejudiciais a quem quer que os cometa, seja qual for o estado subjetivo de responsabilidade moral em que se encontre?
Ou podem esses atos, dependendo do estado subjetivo da pessoa e das circunstâncias e intenções, deixar de ser danosos e tornar-se recomendáveis ou pelo menos escusáveis?
Dúvida número 5:
Depois de “Amoris Laetitia” (n. 303), ainda se deve ter como válido o ensinamento da Encíclica de São João Paulo II “Veritatis Splendor”, n. 56, baseado na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja, que exclui uma interpretação criativa do papel da consciência e que enfatiza que a consciência jamais está autorizada a legitimar exceções a normas morais absolutas que proíbem ações intrinsecamente más em virtude de seu objeto?
“Amoris Laetitia”, n. 303, afirma que a “consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus”. As “Dubia” pedem um esclarecimento dessas afirmações, dado que elas são suscetíveis a interpretações divergentes.
Para aqueles que propõem a ideia de uma consciência criativa, os preceitos da lei de Deus e a norma da consciência individual podem estar em tensão ou até em oposição, enquanto a palavra final sempre deve caber à consciência, a qual decide em última instância acerca do bem e do mal. De acordo com “Veritatis Splendor”, n. 56, “sobre esta base, pretende-se estabelecer a legitimidade de soluções chamadas ‘pastorais’, contrárias aos ensinamentos do Magistério, e justificar uma hermenêutica ‘criadora’, segundo a qual a consciência moral não estaria de modo algum obrigada, em todos os casos, por um preceito negativo particular”.
Sob essa perspectiva, nunca será suficiente para a consciência moral saber que “isto é adultério” ou “isto é homicídio”, a fim de descobrir se se trata de algo que não se pode e não se deve fazer.
Ao invés disso, seria preciso olhar ainda para as circunstâncias ou para as intenções, a fim de se saber se um tal ato poderia, no fim das contas, ser escusável ou mesmo obrigatório (cf. questão 4 das “Dubia”). Para essas teorias, de fato, a consciência poderia decidir legitimamente que, num certo caso, a vontade de Deus para mim consiste em um ato pelo qual eu transgrido um dos seus mandamentos. “Não cometer adultério” é vista simplesmente como uma norma geral. No aqui e no agora, e dadas as minhas boas intenções, cometer adultério é o que Deus realmente está me pedindo. Nesses termos, seriam no mínimo concebíveis casos de adultério virtuoso, homicídio legal e perjúrio obrigatório.
Isso significaria conceber a consciência como uma faculdade para decidir autonomamente acerca do bem e do mal, e a lei de Deus como um fardo que é arbitrariamente imposto e que poderia ser, em certos casos, oposto à nossa verdadeira felicidade.
Entretanto, não é a consciência que decide o bem e o mal. Toda a ideia de “decisão de consciência” é enganadora. O ato próprio da consciência é o de julgar e não o de decidir. Ela diz: “isto é bom”, “isto é mau”. Essa bondade ou maldade não depende dela. O que ela faz é aceitar e reconhecer a bondade ou a maldade de uma ação e, para tanto, ou seja, para julgar, a consciência necessita de critérios; ela é inerentemente dependente da verdade.
Os mandamentos de Deus são uma ajuda bem-vinda oferecida à consciência para que conheça a verdade e, assim, possa julgar corretamente. Os mandamentos de Deus são uma expressão da verdade sobre o nosso bem, sobre o nosso próprio ser, desvelando algo crucial sobre como viver bem. Também o Papa Francisco se expressa nesses termos em “Amoris Laetitia”, n. 295: “Também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem exceção”.